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A indústria norueguesa do salmão e seus prejuízos no fim do mundo
Excesso de uso de fármacos nas estações de piscicultura, solo marinho arruinado e depredação da fauna local são as principais acusações contra esta indústria milionária.

Diego Marín


©CC0/Pixabay
O salmão é um alimento da moda. A cada ano ganha popularidade ao mesmo tempo que é elevado à categoria de "superalimento". É uma fonte de proteínas saudável, especialmente pelo alto teor de Omega 3 e vitaminas A, D e K e por seus efeitos positivos na redução do risco de doenças cardiovasculares.
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No Chile, a salmonicultura como indústria começou a se desenvolver timidamente na década de 80, mas foi a partir de 1990 que se transformou em um verdadeiro boom.

Banhado pelas águas frias e ricas do Pacífico, no sul do continente americano, o salmão se dava muito bem. Logo se transformou em uma indústria milionária.

O Chile é atualmente o segundo produtor mundial de salmão, um negócio que gera receitas de mais de 5 bilhões de dólares por ano no país sul-americano. Segundo estimativas oficiais, a indústria do salmão cria aproximadamente 21 mil empregos diretos, a maioria deles no sul do país. Uma zona enorme, muito pouco povoada e cuja linha de costa é banhada pelo oceano Pacífico.
À medida que a demanda mundial de salmão aumentava, as condições vantajosas que o mar do sul do Chile oferecia foram se tornando mais evidentes para as empresas produtoras chilenas e estrangeiras. Entre estas últimas, as mais importantes vinham da Noruega. Não tardaram a iniciar a longa viagem até, literalmente, o outro lado do mundo.

Entre elas, a principal era a Marine Harvest, que mudou de nome a nível mundial para Mowi no princípio do ano. A transnacional do salmão começou a operar no Chile de modo experimental em 1975. Passaram os anos e com eles surgiram as polêmicas, especialmente a respeito da disparidade nos modelos de produção.
"Na Noruega se trabalha bem, respeitando os padrões e os trabalhadores. Os noruegueses deveriam replicar seus padrões de trabalho locais no Chile e não haveria problemas. A indústria não é má, deveria ser regulada e as entidades fiscalizadoras deveriam fazer seu trabalho"
John Hurtado
presidente da Confederação Nacional de Trabalhadores do Salmão (Conatrasal)
©AP Photo/Robert F. Bukaty
Mas as diferenças entre o modo de produzir salmões das empresas norueguesas no seu país e no Chile não terminam aqui. Um dos temas mais delicados e controversos tem a ver com o uso de antibióticos nos peixes. Fármacos que são aplicados regularmente para prevenir doenças de forma a aumentar a produção.

O salmão do Atlântico que é produzido no Chile utiliza uma enorme quantidade de antibióticos quando comparado com o que se produz em outras partes do mundo, como Canadá, Escócia e na própria Noruega, como se vê seguidamente em um relatório da Mowi em que se apresenta o gráfico da situação.

Mowi manifestou "não estar interessada" em participar desta reportagem.
Fonte: Mowi Integrated Annual Report 2018, pág 67.
Propriedade da Mitsubishi Corporation, o grupo Cermaq mantém operações na Noruega, no Canadá e no Chile. As diferenças no uso de antibióticos relativamente ao país sul-americano também são significativas.
Fonte: 'Uso de antibióticos en la salmonicultura chilena: causas, efectos y riesgos asociados', ONG Oceana, Pág 21.

©subpesca.cl
Mowi e Cermaq, duas das maiores companhias produtoras de salmão em cultivo no mundo, mostram uma diferença apreciável no uso de antibióticos que é aplicado no Chile com o que é utilizado nos seus cultivos em outras partes do mundo, especialmente na Noruega. Não são as únicas, as companhias chilenas também se destacam pelo uso intensivo de antibióticos.

O recorde de antibióticos foi registrado em 2014. Nesse ano nos mares do Chile foram usados 1.500 vezes mais fármacos do que na Noruega e há que ter em conta que o reino escandinavo é o principal produtor de salmão do mundo.

Apesar de o número ter descido, só no ano passado foram usadas quase 350 toneladas de antimicrobianos na indústria do salmão, de acordo com o Serviço Nacional de Pesca e Aquacultura (Sernapesca), que é a entidade reguladora.

O doutor Felipe Cabello, professor de microbiologia e imunologia, membro da Academia de Ciências do Chile e membro honorário da Academia de Medicina do Chile, diz que "a resposta que se dá na salmonicultura chilena para explicar o uso excessivo de antibióticos é que no Chile existe uma doença produzida por uma bactéria, de nome 'Piscirickettsia salmonis', e que esta doença, a síndrome rickettsial do salmão (SRS), não existiria em outras partes do mundo".
Сabello sublinha que "a bactéria tem sido detectada na Noruega, tem sido detectada na Irlanda, também na Colúmbia Britânica e nesses lugares parece que a infecção por elas produz uma doença de menor severidade, apesar de as bactérias no Chile aparentemente não serem tão diferentes das das outras partes do mundo".

Perante isso, para Cabello é possível pensar que haja algumas condições no cultivo dos salmões no Chile que os tornam mais susceptíveis à bactéria que os infecta, e isso torna necessário, segundo as empresas, lhes suprimir toneladas de antibióticos anualmente.

Liesbeth van der Meer, da ONG Oceana, considera que a gestão que se faz no Chile poderia ser fundamental.
"Acreditamos que há um erro de gestão. O salmão não é uma espécie endêmica do Chile, é um peixe introduzido, exótico, e há grandes densidades deles em espaços reduzidos. São 900.000 toneladas de salmões nos fiordes do Chile, distribuídos por concessões não muito distantes umas das outras, e é muito fácil que se contagiem entre os diferentes centros"
Liesbeth van der Meer
diretora-executiva da Oceana
Em termos simples, uma concessão aquícola é a atribuição feita pelo Estado por 25 anos renováveis de determinados bens nacionais, neste caso, de porções de água. Atualmente, no Chile há 1.412 concessões deste tipo atribuídas, se bem que nem todas operem em simultâneo. É nestas concessões que se montam as granjas de cultivo de salmão. É um espaço reduzido, onde os peixes vivem dentro de uma jaula submersa no oceano.
No Instituto Tecnológico do Salmão, entidade a que pertence a SalmonChile, o principal empregador da indústria – e que integra a famosa Cermaq – afirmam: "Não há estudos científicos (ao contrário de outras espécies) que evidenciem uma relação entre o uso de antibióticos na salmonicultura e um perigo para o meio ambiente, os consumidores e os trabalhadores."

O doutor Felipe Cabello especifica: "Que isso não se tenha comprovado é discutível. Se você consultar a literatura científica, há publicações no Chile que provaram que bactérias do intestino dos salmões e do ambiente da salmonicultura têm genes de resistência semelhantes aos genes de resistência dos patógenos humanos. Assim, ninguém que tenha conhecimento da teoria evolutiva em bactérias e da genética em bactérias, duvida que haja passagens de genes de resistência do ambiente para os patógenos humanos e dos patógenos humanos para as bactérias do ambiente."
O tema é de grande importância, especialmente porque se assinala que a indústria alimentar que utiliza antibióticos em seu processo produtivo poderia estar vinculada à problemática da resistência a esses fármacos, uma das maiores ameaças para a saúde mundial, a segurança alimentar e o desenvolvimento, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Segundo a Oceana, o uso intensivo de antibióticos por parte da indústria é um tema em que o econômico é determinante. "Pode-se produzir sem antibióticos, mas acaba sendo mais caro para as empresas e suas margens de proveitos imediatos diminuem. A indústria é avessa a fazê-lo por si mesma. A verdade é que não há muitos incentivos para mudar", assinala Liesbeth Van der Meer.

Independentemente de a indústria chilena afirmar que o uso intensivo de antibióticos não é um perigo, há semanas ela se comprometeu a chegar ao ano de 2025 utilizando menos 50% de antibióticos no seu processo produtivo.

A ilha Grande de Chiloé é o território insular com maior tamanho no Chile. A faixa costeira que a rodeia e as ilhas que formam o arquipélago totalizam 2.000 quilômetros de litoral.
As salmoneiras chegaram há décadas a esse território. E seu impacto tem sido inegável, modificando não só a paisagem das costas do mar interior de Chiloé, senão também sua cultura, baseada em uma parte importante na exploração sustentável dos recursos marinhos.
"Tenho 31 anos e não conheço as espécies locais de peixes que meus pais conheceram"
Álvaro Montaña
geógrafo e ativista
Segundo ele comenta, o desaparecimento de espécies locais está diretamente relacionada à indústria do salmão que, segundo ele, destrói o que a rodeia devido à conjugação de alguns fatores: "O fundo marinho por baixo das jaulas sofre um estado de hipoxia, uma condição anaeróbica, que significa basicamente a ausência de oxigênio, ausência de vida." Esta condição é consequência da "adição de nutrientes a partir das fezes e urina do salmão, isso se vai acrescentando, vai fertilizando a coluna de água e o fundo marinho. Ademais, vai se depositando todo o alimento não consumido e os dejetos orgânicos do peixe."

Mas isso não é o único que prejudica a fauna endêmica. As espécies nativas também se veem afetadas pelas fugas em massa de salmão dos centros de cultivo.

No ano passado, por exemplo, cerca de 690.000 salmões escaparam de uma granja da Mowi.
"Cada fuga de salmões é extremamente prejudicial para o ecossistema. O Salmão do Atlântico é uma especie exótica, carnívora. Está no topo da cadeia trófica. Os fiordes são habitados por espécies menores, espécies endêmicas. Há lugares onde este tipo de fauna se extinguiu"
Liesbeth van der Meer
diretora-executiva da Oceana
"O impacto é menor na zona do Pacífico devido à baixa capacidade de sobrevivência dos que escaparam. […] Quer dizer, a informação disponível até a data indica que a salmonicultura não gera impactos extremos por escapes que se lhe atribuem", asseguram no Instituto Tecnológico do Salmão.

Álvaro Montaña não está de acordo. Para ele, são as próprias condições da indústria e sua localização geográfica que com o tempo seriam uma garantia de fugas em massa: "Estamos na latitude 42 e a produção vai até a latitude 50, perto de Punta Arenas, cidade na margem do estreito de Magalhães, é a região dos fiordes chilenos. Uma zona de tempestades, ocorrência de chuvas, de fortes correntes marinhas que provocam o rompimento de malhas e o afundamento das balsas-jaula. Isso significa fugas em massa."

Os dados oficiais dizem que desde o ano de 2010 se contabilizou a fuga de 3,3 milhões de salmões dos centros de cultivo. De acordo com o secretário de economia da região de Los Lagos, 1,9 milhão corresponderiam a peixes que fugiram de instalações da Mowi. Contudo, a empresa norueguesa desmentiu o funcionário.
Uma cultura transformada
Na ilha de Chiloé, o impacto da atividade de cultura do salmão tem sido tão profundo que muitos dizem que a ilha mudou para sempre.
"Nossos grandes Loncos – chefes, dirigentes indígenas – vinham falando desde há muitos anos da invasão que iria ocorrer. Esta invasão das salmoneiras, eles a viram, foi como um presságio. O desastre que iriam ocasionar estas empresas e o lamentável que iria ser para a nossa cultura"
Ruth Cailleo Caicheo
representante Mapuche-Huilliche, da ilha Grande de Chiloé
Ruth comenta que as concessões aquícolas modificaram dramaticamente o meio de sustento de sua comunidade. A contaminação do fundo marinho e as fugas de salmões não fizeram mais que contribuir para a falta de recursos marinhos, antigamente abundantes. Sem os meios que o mar lhes fornecia, se viram obrigados a mudar sua forma de vida: "O sistema nos impõe o individualismo e que cada um zele por si próprio."

"Meu pai era pescador e meus avós faziam o mesmo [...] Tenho muitos familiares que se dedicavam a isso, mas a nossa cultura se transformou. Já não vivemos em comunidade. A maioria das famílias tem se desintegrado, os homens têm que sair para buscar o sustento nas salmoneiras. As fontes naturais de recursos marinhos já não existem", denuncia Ruth.

Para Álvaro Montaña, a visão econômica do impacto da indústria salmoneira é, em geral, a que domina o debate. Uma perspectiva em que os danos, as "externalidades negativas" passam para segundo plano: "A indústria salmoneira fala do número de empregos que gera direta ou indiretamente, repete isso como um mantra. Porém, por que temos que acreditar em uma indústria que tem mentido permanentemente? Uma pessoa teria que se preguntar, em resultado da depredação pesqueira, quantos empregos foram perdidos? É provável que o prejuízo seja maior que o lucro."

©Heiko Junge/NTB scanpix
Essa opinião tem ganhado força no sul do Chile. Talvez por isso a visita do rei Harald V da Noruega não foi apenas uma fonte de lindos postais fotográficos para a casa real nórdica. Em seu percurso pelos canais praticamente virgens do sul do Chile, esses fiordes que tanto se parecem com os de seu país, o rosto de Harald V foi se alterando. Protestos de uma série de organizações indígenas e de defesa do meio ambiente pediam ao rei que as empresas salmoneiras da Noruega não se instalem no extremo sul da América. "Destroem o meio ambiente e as comunidades costeiras", diziam muitos.


Ruth Caicheo entende essas exigências. Especialmente quando relata como seu povo era orgulhoso da forma tradicional de viver. Uma forma em que o central era a família e a comunidade como uma extensão desta. Mas isso mudou drasticamente nos últimos 30 anos.
"A nossa cultura foi transformada, prejudicada totalmente. Já não vivemos sob os princípios da união e solidariedade, quando pensava no que estava ao seu lado"
Ruth Cailleo Caicheo
representante Mapuche-Huilliche, da ilha Grande de Chiloé
Mas Ruth sente que ainda há algum espaço para otimismo: "Creio que ainda podemos fazer alguma coisa, que ainda podemos fortalecer a nossa cultura, que estamos a tempo de não perdê-la, de não perder nossas raízes." Diz isso com convicção enquanto se despede de nós fora de sua casa. De frente tem a ladeira de uma colina, atrás, nas suas costas, está o mar.
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